"Brasileiro é preso em Dublin por importação ilegal de comprimidos avaliada em €24 mil" Essa foi a manchete publicada pelo portal Irlanda.com via Instagram. A notícia informa que um brasileiro foi acusado de transportar 11.730 comprimidos benzodiazepínicos, medicamentos ansiolíticos, para venda ou distribuição. Na notícia, ele alega que era para uso próprio, mas a quantidade levantou questionamentos sobre a possibilidade de comercialização entre imigrantes e a comunidade brasileira nos comentários. A reflexão que proponho aqui, vai além do que é certo ou errado, mas sim sobre o que leva um brasileiro a carregar tamanha quantidade de remédios controlados? Necessidade? Oportunidade? Demanda? Estaria a comunidade brasileira da Irlanda mais ansiosa e deprimida? Seria o peso da imigração e a necessidade de um olhar mais acolhedor e uma rede de apoio, mostrando suas facetas?
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O fato por si só é alarmante, mas também é a ponta do iceberg que nos alerta para algo maior: a saúde mental do imigrante. Quando deixamos nosso país, não deixamos apenas amigos e família para trás, mas também um modo de vida e uma maneira de existir dentro de uma sociedade que deixa de fazer parte da nossa realidade quando cruzamos a linha da imigração. Imigrar é muito mais do que cruzar um oceano. É um deslocamento psicológico, um luto silencioso, uma adaptação nem sempre fluida, é também, o pontapé para um novo self que, uma vez embarcado, nunca retorna ser ao que um dia foi.
O Luto de Quem Fica e de Quem Vai
Mudar de país não é apenas sobre aprender um novo idioma, encontrar um trabalho e adaptar-se ao clima. É também sobre lidar com a incompletude da escolha. O ser humano, por natureza, já carrega a sensação de incompletude; quando se torna imigrante, ecoa na ausência dos cheiros, sabores e certezas que foram passadas de geração em geração e, de repente, quase deixam de existir. A comida, por exemplo, para a comunidade latina é sinônimo de memória afetiva, de pertencimento, de partilha e celebração entre aqueles que amamos. No Brasil, o almoço é um evento! Na Irlanda, um sanduíche, um chá e alguns biscoitos resolvem a questão. São detalhes que tomamos como garantidos, que agora se abrigam no exílio, muitas vezes reprimidos e engolidos, mas mal digeridos, em meio ao batidão do dia a dia na busca pela adaptação – uma nova dor de estômago, mais um desconforto. É aquela saudade latente que muitas vezes é negligenciada ou sucumbida, passando despercebida – até que, sem se dar conta sobre o que não respira na consciência se respira através de sintoma.
E quando esse processo de adaptação se torna mais árduo do que o esperado? Quando o sintoma grita, mas a falta de tempo, acolhimento e rede de apoio silencia e impede-nos de escutar o que vem da nossa alma? É natural do ser humano recorrer ao que já é familiar, então, muitos recorrem ao que conhecem, movidos pela velha dinâmica de tampar o sol com a peneira. Buscamos por aquilo que acreditamos ser soluções rápidas, como a automedicação. É cultural buscar alívio imediato para o mal-estar. Qualquer coisa que alivie a angústia (aqui, chamamos isso de sintoma).
É um fato que, a automedicação está enraizada na cultura brasileira e tem raízes profundas em nossas origens indígenas e africanas. Antes da colonização, nossos ancestrais utilizavam ervas medicinais, rituais espirituais, xamãs e curandeiros como parte essencial da cura e do cuidado com o corpo e a mente. Essa sabedoria ancestral foi absorvida e adaptada ao longo dos séculos, tornando-se parte do nosso cotidiano. No entanto, quando transportamos essa prática para um contexto em que o acesso à saúde é mais restrito e burocrático e inconsciente, a automedicação ganha uma nova faceta: a necessidade de suprir lacunas deixadas por um sistema de saúde que nem sempre é acessível e acolhedor para imigrantes.
Que brasileiro, ao chegar na Irlanda e precisar de um médico, não sentiu receio ou se viu perdido em como proceder? A escassez de GPs, as consultas sempre pagas e diagnósticos que podem parecer impessoais. A tendência de tentar resolver as coisas por conta própria se intensifica tanto quanto a necessidade de uma alívio rápido e direto.
Entre o SUS e o Sistema de Saúde Irlandês
No Brasil, a ideia de ir ao médico sem gastar uma fortuna faz parte da nossa realidade (obrigada, SUS), ainda que com suas dificuldades. Já na Irlanda, a relação com a medicina é diferente: consultas caras, pouca acessibilidade a especialistas, dificuldade para conseguir prescrições, demora no processo, relatos de diagnósticos errôneos, criam tensão e caos. Para um imigrante, sentir-se mal pode significar não apenas um incômodo físico, mas também um dilema financeiro. E aqui vem outra pitada de sal para temperar essa reflexão: é assim que a automedicação se fortalece! Aquele ansiolítico que foi comprado no Brasil passa a ser racionado. Aquela receita antiga vira um escudo contra a incerteza do sistema local.
E quando a saúde mental já está fragilizada pelo turbilhão de sentimentos que é viver e se adaptar neste processo imigratório, esse ciclo se agrava. O isolamento, a adaptação difícil, a saudade da família – tudo isso depara com o eco de um organismo que já está lutando para encontrar aquela sensação de pertencimento. É sem perceber que o inconsciente toma conta, e o ciclo se repete através de padrões em que a solução imediata parece ser sempre um comprimido a mais na mala. Do chazinho ao benzodiazepínico, evite desconforto!
Como imigrante há sete anos e contando, mudar de país e fazer um intercâmbio é uma experiência que se desdobra para além do lugar geográfico – a imigração é, principalmente, mental. Tornar-se consciente desses processo é tão importante para o bem-estar quanto resolver toda a burocracia, adaptar-se a um país novo não é apenas aprender um idioma e conseguir um emprego; é também transformar a forma como enxergamos a nós mesmos dentro desse novo contexto social, profissional, geográfico, político, cultural e, não menos importante, psíquico. É a base que dá encaixe e também a base que acolhe o desencaixe inevitável de pertencer a dois mundos e, ao mesmo tempo, a lugar nenhum.
A importância da análise e do autoconhecimento durante esse processo, que nos coloca à prova de tantas questões, não pode ser menosprezada ou ofuscada por um caso isolado. O problema maior está em ascensão, e a saúde mental PRECISA ser discutida.
O Que Podemos Fazer?
Esse artigo não busca julgar ou apontar culpados, mas sim levantar um alerta: estamos cuidando da nossa saúde da melhor forma possível? Estamos criando espaços de conversa sobre como a imigração impacta nosso bem-estar emocional? Estamos nos permitindo adaptar não apenas geograficamente, mas também psicologicamente às nossas escolhas e renúncias? Estamos nos permitindo viver este luto de maneira saudável? Estamos respeitando o nosso próprio processo?
Como forma de aprofundar essa discussão, convido leitores brasileiros na Irlanda a participarem de uma pesquisa anônima sobre saúde mental e adaptação cultural. A coleta dessas percepções pode ajudar a entender melhor o impacto da imigração e fornecer dados relevantes para ampliar esse debate.
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Se você chegou até aqui, talvez tenha sentido que essa conversa faz sentido para você ou para alguém próximo. Então, que essa seja uma oportunidade de refletirmos juntos sobre os desafios e caminhos possíveis para um bem-estar que não dependa de um frasco de remédios na bagagem.
Até logo,
Carol
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